Prefácio




Em interessante ensaio, Paul Ricoeur compara o ofício do juiz ao do historiador, destacando semelhanças e diferenças. A recomposição do passado é inquestionavelmente uma característica que aproxima as tarefas, assim como a busca da verdade e a perícia na exibição de falsificações. No tocante às dessemelhanças, Ricoeur realça que a escrita do historiador apresenta a marca da provisoriedade, estando sujeita a um processo ilimitado de revisões. De outro lado, a sentença proferida pelo magistrado possui o caráter de definitividade, após fazer coisa julgada.

Victor Aguiar Jardim de Amorim não é juiz de Direito nem historiador profissional. Exerce, entretanto, funções análogas a ambas. Na seara jurídica, é advogado militante e professor de Direito Público, inclusive possuindo obras publicadas. No campo histórico, Victor é qualificado pesquisador da História do Brasil e de Goiás, embora, em um surto de modéstia, tenha se definido como neófito. Apesar de ainda não ostentar a credencial de historiador (a lei regulamentadora da profissão, em tramitação no Congresso Nacional, reconhece o mestre ou doutor em História como historiador), mantém notável desenvoltura e familiaridade com a matéria.

O livro Pelo Sangue: a genealogia do poder em Goiás aborda um longo período da trajetória política do estado mediterrâneo, cobrindo desde o início do período imperial até a construção de Goiânia, perfazendo um lapso temporal superior a um século. Em razão das características marcadamente aristocráticas da atividade política à época, Victor Amorim adentrou nos meandros da genealogia, desvendando as entranhas de tradicionais famílias vilaboenses. Os Rodrigues Jardim (matriz do tronco dos Bulhões Jardim) e seu patriarca José Rodrigues Jardim, primeiro goiano a ocupar a governadoria, representou seu ponto de partida.

Sem cair na armadilha de isolar a política estadual, deixando de perceber as interferências e os condicionamentos dos cenários nacional e municipais, Victor narra as marchas e contramarchas do jogo político goiano, com ênfase para os episódios da Primeira República (1889-1930). As intensas articulações, disputas de poder, constituição e fragmentação de partidos e grupos geram uma aproximação do leitor com as estratégias e táticas usadas pelos personagens.

Vê-se a expressividade de Leopoldo de Bulhões tanto no Rio de Janeiro (antiga capital federal), onde chegou a ser ministro da Fazenda por duas vezes, quanto em Goiás, estado que liderou por vários anos, por meio do denominado Centro Republicano. O bulhonismo influenciou bastante a cultura política goiana, a ponto de traços indisfarçavelmente seus serem identificados nas duas chefias oligárquicas sucessivas: o caiadismo e o ludoviquismo.

Ao retratar especificamente a era bulhonista, o autor sintetizou a mentalidade patrimonialista que vicejava: “devoção aos parentes, generosidade aos amigos e escárnio aos adversários”. Esta divisa, variação da máxima coronelista “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”, dissertada magistralmente por outro Victor (o Nunes Leal), com maior ou menor intensidade, continuou inabalável nos aludidos ciclos posteriores, a despeito do discurso de progresso e a imagem de modernidade atavicamente acompanharem a nova ordem.

A Revolução de 1909, promovida pelo Partido Democrata (fundado no início de 1909), e marco divisor na História de Goiás, é retratada na obra. Desse movimento sedicioso, capitaneado por Leopoldo de Bulhões, Gonzaga Jaime, Antônio Ramos Caiado e Sebastião Fleury Curado, nasce a expressão política de seu líder militar: Eugênio Jardim. Até então à margem do mundo político, Jardim, a partir daí, assume uma participação cada vez mais efetiva no comando da agremiação governista.

Após três consecutivas dissidências no seio do Partido Democrata – primeiro com a corrente bulhonista, depois com a ala de Gonzaga Jaime e, por último, com a grei de Sebastião Fleury Curado –, os cunhados Antônio Ramos Caiado e Eugênio Jardim, ancorados no apoio do presidente da República Hermes da Fonseca, passaram a comandar a política anhanguerina, secundados, curiosamente, pelos derrotados de 1909.

Durante os 21 anos de hegemonia do Partido Democrata (1909/1930), o autor sustenta que em 14 deles (1912/1926) Caiado não protagonizou solitariamente o comando da política estadual, porquanto Eugênio Jardim compartilhara com ele a liderança.

Não foi um mar de rosas o convívio entre Eugênio Jardim e Antônio Ramos Caiado. Victor Amorim reconhece desavenças entre os cunhados, malgrado não se alongue nesse território inóspito para o pesquisador, uma vez que normalmente envolto pelo manto do silêncio. Talvez essas divergências possam elucidar a renúncia de Eugênio Jardim da governadoria em 1923.

A propósito, dos seis governadores eleitos pelo Partido Democrata (Urbano Gouvêa, Olegário Pinto, João Alves de Castro, Eugênio Jardim, Brasil Caiado e Alfredo Lopes de Morais), apenas o terceiro e o quinto completaram seus mandatos. Ademais, salvo o primeiro, os cinco outros foram sufragados sem adversários nas urnas, o que patenteia a pujança situacionista.

Valendo-se do estilo judiciário, onde o alegado deve ser provado, o autor demonstra conhecer com profundidade a bibliografia existente e os periódicos da conjuntura examinada. Além disso, colaciona fontes originais ainda divorciadas do domínio público, como, por exemplo, a afirmação, em tom profético, de Hermenegildo Bessa à viúva Diva Fagundes Caiado: “Depois da morte de Eugênio, Goiás tornou-se um braseiro sob cinzas, assim que alguém der o primeiro sopro, irá tudo pelos ares”.

Coincidência ou não, é fato que a oposição, esfacelada desde 1920, rearticula-se após a morte de Eugênio Jardim (julho de 1926), tonificada especialmente pela deflagração da crise entre o governo e o poder judiciário. Daí até a vitória da Revolução de 1930, a oposição assumirá, em alguns momentos, um viés radical e mesmo obsessivo, de modo particular contra o agora (exclusivo) líder oligarca Antônio Ramos Caiado.

O bem escrito texto de Victor Aguiar Jardim de Amorim também questiona as formulações mitológicas oriundas da ditadura estadonovista e assinala o caráter autoritário que presidiu a transferência da capital de Goiás, nunca perdendo de vista os rastros deixados pelo mestre cerratense Paulo Bertran. Ou seja, os “óculos de Goiânia” foram descartados!

Desse modo, foi possível enxergar além do consagrado, descortinando-se a relegada dimensão da Cidade de Goiás, ávida por amortecer os previsíveis danos econômicos e sociais resultantes da mudança e desesperada por preservar sua primazia educacional e cultural no âmbito estadual (o vilaboense se sentia um heleno entre bárbaros, segundo Bernardo Élis), mormente no instante em que percebera a iminência do descumprimento das promessas de compensações, afinal confirmado com o arrastamento a fórceps da única (goiana) rede pública completa de ensino para Goiânia.

Já se disse que a memória é um grande reservatório para a história. E esse reservatório memorial, tal qual a história, se renova permanentemente. Por isso, a presente pesquisa, emanada de diligente trabalho realizado nos arquivos, seguramente contribuirá para a constante metamorfose a que está submetido o saber histórico.


Goiânia, março de 2015.

Jales Guedes Coelho Mendonça
Doutor em História pela UFG, Promotor de Justiça, membro do IHGG (cadeira nº 5) e autor do livro A invenção de Goiânia: o outro lado da mudança.